#34 Piggy (2022)

   


* TEXTO DE FABRINA MARTINEZ

Se meteram comigo. Tinha prometido a mim mesma que jamais, never, ever entraria noutra discussão sobre arte (sim senhoras, esse é o caso) e corpo gordo até o momento em que encontrasse discussões sobre arte e corpos altos, por exemplo. Acontece que o filme Piggy, escrito e dirigido por Carlota Pereda, faz o mínimo de forma exemplar ao mostrar Sara (Laura Galán) como o que ela é: uma pessoa. No IMDb, Piggy é apresentado da seguinte forma: 

Porquinha (2022) Uma adolescente com excesso de peso é perseguida por um grupo de mulheres junto à piscina enquanto está de férias na sua cidade natal. A longa caminhada para casa vai mudar o resto da sua vida.

Se meteram comigo. Vamos lá.


Sara, a Sarita, é uma adolescente que ajuda os pais (com toda disposição que só os adolescentes tem) no açougue da família, numa pequena cidade da Espanha. O negócio está em decadência porque é caro, ou seja, não consegue concorrer com os preços dos supermercados. Sara é gorda. Assim como o pai, a mãe e o irmão. Coisa que foge do conhecimento deles. O FATO de Sara ser gorda é usado como justificativa para os constantes ataques físicos e mentais que recebe. Sara é chamada de Cerdita ou Porquinha. Nosso primeiro contato com essa informação é quando uma garota entra no açougue, tira uma foto de Sara e dos pais e publica na rede de fotos do Mark com a legenda “os três porquinhos”. A foto é republicada por uma ex-amiga de Sara. O filme deixa implícito que elas eram próximas e, em determinado momento, se separaram. Claudia, a ex-amiga, é magra. A foto meio que viraliza ali na cidade. Muitos likes e comentários sobre os porquinhos. 

Nesse mesmo dia, um assassino aparece na cidade e comete uma série de crimes. No mesmo lugar e quase na mesma hora em que o assassino matou o salva-vidas da piscina pública, o criminoso testemunha quando três adolescentes, incluindo a autora da foto e a ex-amiga de Sara, atentam contra ela. Os crimes - do assassino e das adolescentes - acontecem numa piscina pública. Sara está de biquíni, prestes a entrar na água, quando as garotas aparecem e a humilham dizendo que ela e o assassino seriam namorados. Ambos são gordos mas só o corpo de Sara importa. Elas humilham Sara, tenta afogá-la, filmam e enviam pra outra pessoas (como saberemos depois) e fogem com suas roupas. Sara precisa voltar pra casa e volta caminhando pela estrada, de biquíni e melissa. Três homens se aproximam num carro, a chamam de torresmo, a apertam, tentam roubar o biquíni de Sara e vão embora. É quando ela chora pela primeira vez.

Até esse momento, é o tamanho do corpo de Sara que dita quase de forma exclusiva a narrativa e o curso da violência.

Sara continua a caminhada e vemos que ela vai passar por outro carro. Do assassino que, naquele momento, está matando uma das garotas que se meteu com Sara. Dentro do carro dele, a ex-amiga pede a Sara que a salve. Há sangue, gritos, medo e alguma coisa que não sei nomear. O assassino deixa Sara ir embora e oferece a ela uma toalha para que ela se cubra. Sara volta pra casa, vê os comentários na foto em que ela foi exposta juntos aos pais e decide não contar nada sobre o que foi feito com ela ou com as garotas. Você contaria?

Sara em sua melhor forma

Nesse momento, eu odiava todas as pessoas do filme e outras que não eram. Sou uma mulher gorda e há muito da Sara em mim. Inclusive o silêncio. Aqui o filme se divide em dois e o corpo de Sara continua numa evidência numa narrativa e não em outra. Sara é obrigada a contar a violência que sofria e, como esperado, é empurrada pro emagrecimento. Essa narrativa não interessa porque ela é ordinária e deve ser tratada no campo do coletivo. Ordinária no sentido de ser comum a todas as pessoas gordas que são, diariamente, emagrecidas ou empurradas pro emagrecimento à força. O debate está ali, mas há outra coisa que a diretora fez e que quero colocar em pauta. 

Ela não coloca Sara como vítima, mas também não a coloca como heroína. Sara é uma pessoa e diante de um assassino se posiciona como uma pessoa. É perturbador perceber que os atos de afetos destinados à Sara vem do assassino. É ele quem oferece uma toalha; é ele quem oferece a ela a comida que ela deseja; é ele quem pergunta se ela está bem, é ele quem a protege das pessoas que a violentam; é ele que a deseja como ela é; é ele que a esconde quando ela está em risco. Ele, um assassino. Sara percebe isso e reage a esse afeto sem questionar o lugar de onde ele vem. O que torna Sara uma pessoa é o que ela sente. E o que ela sente é complexo e não pode ser definido em um adjetivo. Piggy é um filme genial porque subverte a ordem ao não ceder pra narrativa da amiga gorda. Piggy é um filme genial porque usa o gore para mostrar que uma pessoa gorda é uma pessoa. Isso aqui esquece, né? Tá falando de elite.

Eu tatuaria essa foto na testa

Finalmente. A gente quer histórias de mulheres gordas trambiqueiras. Ninguém aguenta mais histórias com amigas gordas, com mulheres gordas que são engraçadas ou que estão sofrendo com dieta. Queremos mais mulheres gordas dando tiros; roubando celular do pai; mentindo pra mãe; querendo dar pra assassino; deixando mulher magra e escrota pra morrer; matando homem escroto a dentada; cobertas de sangue e curtindo o rolê de moto; dando tiros e fumando maconha. A gente quer filme em que mulher gorda seja mulher. Piggy é um filme genial porque mostra que determinadas violências não enxergam tamanho e que magreza não é um atestado de vida longa e próspera. Enquanto mulher gorda sinto-me realizada ao repetir à exaustão o adjetivo genial ao falar de Piggy e gostaria de dizer que é um tremendo ato de covardia o filme não se chamar Porquinha ou até mesmo Porca em português. Manter o nome em espanhol (Cerdida) ou em inglês (Piggy) não minimiza a violência. O que talvez minimize é, finalmente, ver o corpo de Sara banhado de sangue alheio. Representatividade importa.


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