#90 Godzilla (1954)

 

1954 – Japão – p&b, 96 minutos

Direção: Ishiro Honda

Roteiro: Ishiro Honda e Takeo Murata

Elenco: Akira Takarada, Momoko Kochi, Akihiki Hirata, Takashi Shimura, Kokuten Kôdô, Katsumi Tezuka, Haruo Nakajima, entre outros e outras

Muito pensei se faria um contexto histórico sobre o país do Sol Nascente da sua sanha imperialista desde bem antes da Segunda Guerra Mundial até chegar à dita cuja, mas, à medida que eu pesquisava o assunto, fui entristecendo por confirmar que de lá pra cá os homens não mudaram muito, mudaram sim, os reis e rainhas do tabuleiro geopolítico global, mas suas atitudes são bastante parecidas, saques, expansionismo, colonialismo (um nome civilizado para invasões de outros países), alianças e traições. Fiz questão de escrever “homens” mais acima para fazer justiça às mulheres, que raramente fizeram parte das lideranças dessas ações, sendo na verdade grandes vítimas delas, como no triste exemplo do Massacre de Nanquim, para citar apenas um, quando o Japão invadiu a China em 1937 e entre outras coisas, seu exército estuprou mais de trinta mil mulheres, fora outras tantas executadas, torturadas e sequeladas física e mentalmente, sendo este um dos eventos que ajudou a deflagrar a Segunda Guerra Mundial. Sentiu o peso? Pois é, achei melhor focar no filme, mesmo.

Pelos caminhos que o Kaiju (“besta estranha”, “animal incomum”) mais querido do planeta trilhou com o passar das décadas (é a franquia mais longa da história do cinema), hoje em dia boa parte do público tende a pensar que todos os filmes do monstrão se resumem a tiro, pancada e bomba e vários deles são mesmo, mas este, que começou tudo há quase setenta anos, não. Tudo se inicia em um navio que se encontra nas imediações da Ilha Odo, os marinheiros estão a fazer coisas de marinheiros e os que estão de folga participam tranquilos de uma roda de violão quando, de repente, uma explosão de grandes proporções acontece no oceano, gerando uma claridade semelhante à de uma explosão nuclear que afunda o navio. Mais dois deles são enviados em socorro, sendo um deles pesqueiro e ambos encontram o mesmo destino, levando as autoridades a suspeitar que os incidentes foram causados por um vulcão submarino.

Não bastasse a incógnita da natureza dos naufrágios, a perda de vários homens da vila abala a comunidade, que, para piorar, vê a pesca escassear de uma hora para outra e um dos anciãos da vila lembra de uma história sobre um antigo monstro chamado “Gojira” e diz que quando ele comer todos os peixes do mar, se dirigirá à terra para devorá-los e que para evitar isso, costumavam enviar uma mulher (!!!) numa jangada para o alto-mar, em sacrifício, num ritual específico para espantar a criatura. Um sobrevivente prefere não dizer o que viu por medo de ser chamado de mentiroso ou louco. As dúvidas não param de crescer e como não há nada nessa vida que não possa piorar, a ilha é fustigada por um furacão, levando vários de seus habitantes a óbito e ferindo outros, além de destruir residências. Alguns começam a suspeitar de que aquilo possa não ser obra da natureza e um cientista propõe às autoridades levar uma equipe à ilha e estudar os acontecimentos de perto, pois, podem estar diante de uma espécie desconhecida e tem seu pedido acatado. Lá, eles descobrem resquícios de radiação, em particular, em um dos poços de água doce que abastece o lugar, além de uma trilobita, uma espécie que se acreditava extinta há milhões de anos.

Com pouca comida, água escasseando, alguns sem casa e outros enlutados, testemunhamos uma situação calamitosa e como desgraça muita nunca é pouca, a criatura finalmente aparece, um ser com dezenas de metros de altura, aparência de réptil e olhar esgazeado, a grosso modo, um lagartão com caras de poucos amigos. De nenhum amigo, na verdade. Ele não mata ninguém e nem precisava, a simples visão dele contra o céu já dava o recado.

Em homenagem à lenda contada anteriormente pelo ancião, a criatura é batizada de Godzilla, os cientistas chegam à conclusão de que ele vivia num ecossistema fechado no fundo do mar, muito provavelmente com criaturas similares a ele (dando pistas de que aquela história poderia não acabar naquele filme) e que os testes nucleares abriram uma passagem que permitiu a ele alcançar o mundo exterior. E para piorar o que já está horrível, a criatura emite o mesmo tipo de radiação usado nas bombas H, gerando um debate na sociedade sobre se se deveria compartilhar essa informação devido ao peso que ela teria perante a opinião pública, aliados estrangeiros e a reação das pessoas diante do assunto radiação, o que é totalmente plausível, visto que os ataques sofridos em Hiroshima e Nagasaki  não contavam uma década e este era ainda um tema muito sensível. Enquanto isso, Godzilla destrói mais duas dezenas de navios e a população, traumatizada, teme não sobreviver a ele, mas, se existem aqueles que querem destruí-lo, há aqueles que enxergam uma chance única para a ciência e querem estuda-lo, não encontrando muito apoio das autoridades para isso por causa dos ataques inclementes do Kaiju, que destrói tudo à sua frente enquanto caminha em direção à Tóquio, transformando os lugares por onde passa em mares de fogo e escombros. O Japão volta a ser um país sitiado e desesperado, sofrendo derrota após derrota após derrota após derrota nas mãos do monstro gigante, mas, a vida ensina que quando tudo parece que vai acabar é bem possível que vá acabar mesmo, porém, o que seria de nós sem a esperança? E ela aparece na forma de uma arma antes nunca vista.

É preciso dizer uma coisa: Godzilla é um filme muito, muito triste. E corajoso. O diretor Hishiro Honda colocou o público japonês frente a frente com vários traumas daquela sociedade, que durante séculos acumulou um histórico de vitórias e que em menos de dez anos viu tudo ruir, desde a autoridade de seu imperador, considerado um ser divino, à própria estrutura de sua sociedade, quando foram vítimas de um dos mais brutais “recados” dados ao mundo e os Estados Unidos bombardearam o país duas vezes com armas nucleares no espaço de três dias, matando centenas de milhares de pessoas. Talvez para exorcizar essa dor e também encantados com o que viam, o público lotou as salas de cinema, tornando o filme um dos maiores sucessos de bilheteria da história do Japão, sucesso que se repetiu no exterior, tendo o filme sido reeditado em 1956, num corte com atores americanos inseridos no enredo para agradar ao público de lá (!!!) e desde então o monstro se tornou parte indissociável da história do cinema de entretenimento e da cultura pop, sendo adaptado para livros, HQs e animações, às vezes com resultados não tão satisfatórios, mas, sem deixar de angariar legiões de fãs que atravessam gerações, afinal, Godzilla é sempre Godzilla e o lagartão é bom até no ruim. 




Comentários