#355 Halloween (2018)


Texto escrito por Clara Gianni

Há uma passagem em Halloween (2018) que, acredito eu, sintetiza bem a essência do longa como um todo. 

Após visitarem Michael Myers (James Jude Courtney) no hospital psiquiátrico em que este se encontra instalado, em busca de abordá-lo acerca dos acontecimentos do dia 31 de outubro de 1978 (vale registrar, sem muito sucesso), os jornalistas Dana Haines (Rhian Rees) e Aaron Korey (Jefferson Hall) decidem buscar o outro lado da moeda, e entrevistar Laurie Strode (Jamie Lee Curtis). Quarenta anos depois, marcada pelo trauma daquela noite, Laurie agora vive em uma verdadeira fortaleza contra invasores (contra um invasor, em específico...), após dois casamentos frustrados, e uma relação conflituosa com a filha. A abordagem dos jornalistas aqui, também, não é lá das melhores. Perguntada sobre o que ainda poderia ser descoberto ou vislumbrado sobre a pessoa de Michael Myers após tanto tempo ("um ser humano que matou a irmã aos seis anos de idade"), Laurie responde algo parecido como: Michael Myers matou cinco pessoas, quase me matou, e é um ser humano que precisa ser entendido. Eu, que sobrevivi àquela noite, e tive todos esses relacionamentos frustrados, sou a louca.



Halloween (2018) é um filme sobre três gerações de mulheres: a avó, a mãe e a menina. O enredo é basicamente Michael Myers fugindo da instituição em que estava internado para, quatro décadas depois, tocar o terror novamente e finalizar o trabalho que deixou por terminar. Mas a trama é, no fim das contas, todinha delas. 

Laurie, bastante mudada desde que a vimos como a babá adolescente em fuga do primeiro filme, passa por um processo semelhante ao de Sarah Connor (Linda Hamilton), em Terminator 2: endurece seu coração e aprende a matar. A casa em que vive, com alçapões debaixo do piso e armas de fogo a postos nas paredes, é reflexo do estado de alerta em que a menina, agora uma mulher adulta, adentrou (e do qual nunca saiu totalmente) desde a noite de halloween tantos anos antes. Em cada movimento de Laurie vemos um desejo por uma catarse que nunca vem, pelo momento em que terá a chancr de mostrar a seu agressor do passado que não será mais a caça, e sim a caçadora. 



Acredito que muitas vítimas de abuso físico ou emocional (especialmente mulheres) podem se identificar com o sentimento de impotência que sucede episódios traumáticos, a vontade de retomar a agência da própria vida, e não visualizar a si em um papel indefeso. O que pouco se discutia, até algum tempo atrás, e tem sido mais comentado nos últimos anos quando se fala em trauma e transtorno do estresse pós-traumático, é que vítimas nem sempre corresponderão a esteriótipo de fragilidade e passividade reclusa: muitas podem, sim, apresentar comportamentos tidos como desagradáveis, ou até percebidos como cruéis ou abusivos como resposta ao episódio traumático, o que não diminui em nada a necessidade de acolhimento a ser dispensada no trato com essas pessoas. O filme parece preocupado em conferir uma dimensão de humanidade à figura de Laurie — uma das primeiras personagens de franquias de terror, junto de Ellen Ripley (Sigourney Weaver) a serem denominadas "final girls". É dentro deste contexto que conhecemos a filha da sobrevivente. 

Karen Nelson (Judy Greer) jamais conheceu Michael Myers pessoalmente. E, no entanto, sua vida foi de tal forma moldada em torno do assassino que sequer seria preciso. Os primeiros anos de infância da moça foram marcados por lembranças de Laurie preparando-na de todas as formas possíveis para sobreviver às crueldades e ameaças do mundo exterior. Em sei afã de abandonar o papel de figura indefesa, Strode treina a filha para reagir e atacar de todas as formas que ela não pôde fazê-lo quando o perigo surgiu. O resultado é a continuidade do trauma através das gerações de mulheres da família: por consequência da criação extrema que despendeu à filha, Laurie perde a guarda de Karen, que passará o resto da vida marcada por sentimentos profundos de paranoia, ansiedade e antecipação em relação àquele que é chamado de "bicho-papão". Mesmo depois de adulta, tendo constituído sua própria família, a relação com a mãe ainda é tomada das lembranças tumultuadas do passado. Então chegamos à mais jovem das três principais figuras femininas da trama. 

Neta de Laurie Strode, Allyson Nelson (Andi Matichak) é uma adolescente que, a contragosto da mãe, tenta se aproximar da avó sempre que possível — aqui cabe um adendo para a primeira interação de ambas no filme, uma referência muito bacana e criativa ao primeiro filme. Ela se encontra em uma encruzilhada entre tentar aproveitar a adolescência, se divertir ao lado do namorado (spoiler: um bostola de marca maior, com o perdão do português) e seguir os conselhos da mãe no sentido de "não se consumir com paranóias", e, ao mesmo tempo, manter o olhar desconfiado e vigilante diante dos perigos que o mundo oculta, atenta às prescrições da avó — sendo neta de quem é, é preciso estar atenta e forte. Allyson é esperta, sabe se virar quando dito perigo surge no horizonte, mas também é humana, e não pode enfrentar uma ameça da envergadura de Myers sozinha. 



Gostei muito de vislumbrar como um único trauma atravessou as vivências dessas três mulheres, como influenciou cada uma de formas diferentes, e como elas reagem à figura de Myers quando este deixa de ser uma lembrança, ou um vulto distante, para se tornar um perigo real. A cena final, em que avó, mãe e menina estão reunidas após a noite de terror que se sucedeu, é bastante emblemática. 

Num futuro recente, espero ter a oportunidade de revisitar este filme aqui (até porque a trilha de John Carpenter está, literalmente, de matar). Como alguém que não é lá muito afeita a franquias longas de terror (por pura preguiça mesmo), e inicialmente andava desencorajada de retornar ao universo de Halloween, conhecidíssimo por suas diversas e polêmicas linhas temporais, foi uma grata surpresa descobrir que não é fundamental ter assistido previamente às produções anteriores, tidas por muitos como experimentos com níveis variados de sucesso. Para quem não sabe por onde começar, este aqui seja um segundo passo muito interessante após o filme original de 1978.

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